Há pelo menos três certezas inabaláveis em relação aos atos terroristas na França: os terroristas eram cidadãos franceses muçulmanos; o Charlie Hebdo é um pasquim com humor pior que o meu francês; os terroristas muçulmanos, não só os franceses, ganharam um discurso de justificação acusatória contra as vítimas elaborado pelos multiculturalistas ocidentais, esta espécie em vias de expansão.
É tanto curiosa quanto reveladora a semelhança da maioria dos discursos que condenou as mortes ao mesmo tempo em que relativizou o ato terrorista. Militantes do multiculturalismo e parte dos muçulmanos simpáticos aos jihadistas não fizeram muito esforço para afirmar que os cartunistas haviam ido longe demais no desrespeito ao Islã e que o terrorismo era uma reação compreensível diante do histórico de ações cometidas contra os países muçulmanos pelos governos de países ocidentais.
No núcleo das tentativas retóricas de desvincular a religião muçulmana do terrorismo islamita, o que acabou se vendo foi uma desresponsabilização implícita a partir do uso de termos e expressões que rapidamente entrarão no vocabulário dos islamitas radicais.
E, em vez de o debate concentrar-se no fenômeno do terrorismo islamita, foi estrategicamente deslocado para a vitimização dos muçulmanos que vivem na Europa diante da possibilidade do fortalecimento do discurso anti-islamita e anti-imigração pelos “partidos de extrema-direita”. Os europeus, vítimas diretas do terrorismo, foram colocados em segundo plano.
Publicidade
Eis a essência da ideologia multiculturalista: usar as minorias como instrumentos de perseguição da cultura local tradicional, ela mesma fruto da bem-vinda diversidade cultural construída e desenvolvida desde a formação das sociedades e de suas nações – o que, obviamente, não inclui os terroristas. Não é à toa que, segundo Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, “na imaginação empobrecida dos multiculturalistas, todos os que não pertencem, por nascimento, à cultura predominante estão empenhados numa luta conjunta contra a tirania opressiva e ilegítima”.
O multiculturalismo, lamento dizer, não é o mero reconhecimento e proteção das diferentes culturas num ambiente de tolerância e diversidade. É um projeto político-ideológico para lidar com a diversidade cultural e religiosa a partir do reconhecimento legal dos “direitos dos grupos diferenciados”, na expressão de Will Kymlicka, que são juridicamente privilegiados em detrimento da sociedade local, incluindo as minorias sem representação articulada.
Na Europa e nos Estados Unidos, o multiculturalismo converteu-se numa poderosa arma de ideólogos e representantes das minorias organizadas contra a cultura local, o que significa, contraditoriamente, um ataque contra a diversidade cultural que supostamente deveria promover. O discurso multiculturalista tende a converter imigrantes em inimigos e minar a cultura local, desenvolvida com o acréscimo de diferentes culturas, a ponto de fragilizá-la ao longo do tempo e torná-la irrelevante, caso não haja uma defesa vigorosa e adequada de sua importância.
A aplicação política da concepção multiculturalista é, em última instância, “uma revolta contra aquelas tradições políticas, sociais e intelectuais que definem o esforço humanístico”, diz Roger Kimball em Radicais nas Universidades. Tal discurso foi construído por intelectuais ocidentais e disseminado com sucesso nas universidades. Dois de seus mais célebres expoentes são Herbert Marcuse e Louis Althusser, ambos marxistas representantes de uma categoria tão adequadamente explicada por Roger Scruton em seu Pensadores da Nova Esquerda.
Entre os maiores adversários da integração das minorias em diversos países, incluindo a dos islamitas moderados, estão os multiculturalistas profissionais, que conquistam reconhecimento público e profissional criando ou incitando conflitos artificiais que deveriam ser resolvidos com integração. Uma integração que depende, inicialmente, de um sentido de dever e de responsabilidade dos imigrantes para respeitar e enriquecer a cultura do país onde decidiram construir as suas vidas.
Nas mãos dos multiculturalistas – muitos deles entrincheirados nas universidades e nos meios de comunicação –, porém, as minorias continuarão a ver e a ser vistas como elementos de conflito, ameaça e desagregação, não como agentes de um mutuamente benéfico processo de inclusão e engrandecimento cultural. Dalrymple é preciso: “Os imigrantes enriquecem – e enriqueceram – nossa cultura, mas o fazem por adição, e não por subtração ou divisão”.
O multiculturalismo e o terrorismo são, hoje, dois dos grandes inimigos da civilização.
Bruno Garschagen é mestre em Ciência Política e professor de Teoria Política.