Em abril de 1945, quando Hitler cometeu suicídio em Berlim, ninguém estava interessado no que ele acreditava. A guerra não é um período de reflexão e o que Hitler fez foi tão destruidor – e ficou amplamente conhecido pelas fotos de corpos nus empilhados em valas coletivas – que pouca atenção foi dada ao ideal nacional-socialista (vulgo “nazista”).
Lendo esses materiais, fica claro, sem sombras de dúvidas, que Hitler e seus aliados se consideravam socialistas e que outros também acreditavam nisso.
Adotar o nome “nacional-socialismo” não foi uma hipocrisia. Numa época onde a União Soviética era o único estado socialista no mundo e Hitler adotou a retórica antibolchevique como parte de seu apelo popular, é compreensível que ele relutasse em falar abertamente sobre as suas fontes – em público, Hitler sempre se declarou um antimarxista. Sua megalomania impedia que ele se declarasse discípulo de qualquer pessoa. E isso levou a uma estranha e paradoxal aliança entre os historiadores de esquerda modernos e a mente de um ditador. Muitos analistas atuais se recusam a analisar a mentalidade de Hitler e aceitam, sem questionar, o slogan “Cruzada contra o Marxismo” como uma síntese de sua visão, classificando Hitler e seu nacional-socialismo, erroneamente, como sendo “conservador” ou de “extrema-direita”.
Em suas conversas privadas, Hitler reconhecia sua dívida com a tradição marxista. De acordo com Hermann Rauschning, um nazista que conheceu Hitler antes de sua ascensão ao poder em 1933 e publicou as conversas que teve com o ditador, Hitler afirmava que “havia aprendido muito com o marxismo”. Ele se orgulhava de ter se aprofundado na lógica marxista quando era um estudante, antes da Primeira Guerra Mundial, e posteriormente na prisão em 1924, para onde foi levado quando sua tentativa de golpe (o Putsch de Munique) falhou. O problema dos políticos da República de Weimar, como Hitler afirmou a Otto Wagener, era que “eles nunca leram Marx” e acreditavam que a Revolução Russa de 1917 era apenas “uma questão limitada à Rússia” e não um acontecimento que teria mudado a história humana. Suas diferenças com os comunistas eram mais táticas do que ideológicas. Para Hitler, os comunistas eram meros panfleteiros, enquanto ele acreditava que “tinha colocado em prática o que esses vendedores ambulantes e empurradores de canetas começaram timidamente”, afirmando, com todas as letras, que “todo o nacional-socialismo era baseado em Marx”.
Essa é uma observação devastadora e mais bruta do que qualquer coisa em seus discursos ou em Mein Kampf: mesmo em sua autobiografia, ele salienta que a sua doutrina era diferente do marxismo por reconhecer a importância das “raças” – deixando implícito que poderia ser facilmente ser reconhecida como mera derivada. Sem a luta de raças, Hitler afirmava, o nacional-socialismo “apenas competiria com o marxismo em seu próprio terreno”. O marxismo era internacionalista. Os proletários, como diz o famoso slogan, não têm uma única pátria. Hitler tinha uma pátria e ela era tudo para ele.
Mesmo assim, privadamente ele reconhecia que o nacional-socialismo era baseado em Marx. E faz todo sentido. O nazismo era baseado no marxismo de diversas formas. Ambos são teorias históricas que afirmam explicar todo o passado e o futuro da humanidade. Hitler apenas descobriu que o socialismo poderia ser nacional e não apenas internacional. Era possível haver um nacional-socialismo. Como Hitler afirmou a seu conselheiro econômico, Otto Wagener, em 1930: o socialismo do futuro seria baseado na “comunidade do povo”, não no internacionalismo, e sua tarefa era “transformar o povo alemão em socialista sem matar os antigos individualistas”, ou seja, os empreendedores e gestores da era liberal. Eles deveriam ser usados e não destruídos. O estado poderia controlar tudo sem que fosse o proprietário, e, guiada por um único partido, a economia poderia ser planejada e direcionada sem estatizar totalmente a propriedade privada.
Essa percepção foi fundamental para o nacional-socialismo. A estatização da propriedade privada, como a então recente Guerra Civil Russa mostrava, significava que alemães teriam que lutar contra outros alemães, e Hitler acreditava que havia um caminho mais rápido e eficiente rumo ao socialismo, sem demandar uma guerra civil.
Como Hitler disse a Wagener, a era do individualismo havia chegado ao fim e sua tarefa era “encontrar e trilhar o caminho do individualismo ao socialismo, sem que haja uma revolução”. Marx e Lenin teriam escolhido a meta correta, mas o caminho errado – longo e desnecessariamente doloroso. Ao destruir os burgueses e os latifundiários, Lenin transformou a Rússia numa massa cinza de humanidade indiferente, uma vasta e anônima horda de pessoas que tiveram suas propriedades tomadas e perderam padrão de vida. O estado nacional-socialista elevaria o padrão de vida de todos, muito mais do que o capitalismo. Em outras palavras, Hitler e seus aliados levavam muito a sério a implantação do socialismo.
A mentalidade de Hitler muitas vezes olhava para o passado: não para a Idade Média, como os socialistas vitorianos Ruskin e William Morris, mas para um passado ainda mais remoto e supostamente cheio de virtude heroica. O mesmo pode ser dito de Marx e Engels.
Foi a questão da raça, acima de todas as outras, que tem evitado que o nacional-socialismo fosse classificado como socialismo. Os proletários não têm pátria, como Lenin dizia, mas havia raças que deveriam ser exterminadas, de acordo com a visão de Engels escrita no artigo “
Der Magyarische Kampf” (“A Luta dos Magiares”), de janeiro de 1849, publicado no jornal Neue Rheinische Zeitung, editado por Karl Marx. Essa visão foi reforçada pelos socialistas até a ascensão de Hitler ao poder e é possível afirmar que Auschwitz foi inspirado pela mentalidade socialista. A teoria histórica marxista requer e defende genocídios por motivações implícitas na afirmação de que o feudalismo estava dando lugar ao capitalismo, e que este deveria ser suplantado pelo socialismo. Após a “revolução do proletariado”, raças inteiras ficariam para trás, verdadeiros resquícios feudais em uma era socialista; e como estes não conseguiriam avançar dois passos de uma vez, deveriam ser exterminados. Eles seriam o “lixo”, de acordo com Engels, e serviriam apenas para ser “o esterco da história”.
Essa visão brutal, a qual foi reforçada pela pseudo-ciência chamada eugenia na geração seguinte, se tornou uma defesa comum dos socialistas em geral, e foi convenientemente esquecida após a liberação de Auschwitz em janeiro de 1945. Há farta evidência da defesa da eugenia nos escritos de HG Wells, Jack London, Havelock Ellis, Bernard Shaw, Sidney e Beatrice Webb e outros socialistas que não hesitavam em defender o genocídio no Século XX. A ideia de “limpeza étnica” fez parte do ideal socialista por praticamente um século: do artigo de Engels escrito em 1849 até a morte de Hitler em 1945, todos aqueles que defendiam o genocídio se autointitulavam socialistas, sem exceções.
Os intelectuais socialistas do Ocidente defendiam, durante a Primeira Guerra Mundial, a “pureza racial” e a “dominação dos brancos” por meio da violência. O ideal socialista oferecia a eles um cheque em branco e a licença para matar incluía o genocídio. Em 1933, Bernard Shaw exaltava o extermínio em massa
no prefácio de On the Rocks, uma ideia que a União Soviética já havia adotado na fome ucraniana conhecida como Holodomor. Os socialistas podiam se orgulhar de um estado que teve a coragem de agir (em prol da eugenia). Sidney e Beatrice Webb, os criadores de sociedade fabiana e da London School of Economics – a qual abrigaria futuramente outro eugenista, John Maynard Keynes – chegaram a escrever livros
em 1935 e
1942 exaltando o “Comunismo Soviético” como uma “Nova Civilização”, a “mais alta forma de democracia já criada”. No mesmo período, em 1935, a Suécia iniciou um
programa estatal de eugenia que esterilizou compulsoriamente ciganos e pobres, tendo sido finalizado somente em 1975.
A alegação de que Hitler não poderia ser um socialista porque ele defendeu e praticou um genocídio, portanto, é uma falha monumental que ignora a história. Somente os socialistas defendiam ou praticavam genocídios naquele período, e Hitler sabia disso. Em seu famoso discurso “
Por Que Somos Antissemitas“, feito a uma plateia de 2000 pessoas do Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães) no dia 15 de agosto de 1920, em Munique, Hitler afirmou: “Somos socialistas e, portanto, devemos ser necessariamente antissemitas porque queremos lutar contra o exato oposto (do socialismo): o materialismo e o mamonismo”. A plateia irrompeu em aplausos. Hitler continuou: “Como é possível não ser antissemita quando se é um socialista! Haverá um dia em que será óbvio que o socialismo só pode ser implantado se estiver acompanhado do nacionalismo e do antissemitismo. Os três conceitos estão conectados de forma inseparável. Eles são a base do nosso programa e, por isso, nos chamamos nacional-socialistas!”
As primeiras reações ao nacional-socialismo fora da Alemanha se perderam no tempo. A ascensão do fascista Mussolini ao poder, em 1922, pegou a Europa de surpresa. De onde vinha? Harold Nicolson, eleito para o parlamento em 1935 e um dos primeiros a alertar para a ascensão do fascismo (por ter visitado Roma em janeiro de 1932 e estudado os panfletos fascistas) afirmava que o fascismo era um socialismo militar, um “experimento socialista que destrói a individualidade”,
como afirmou em seu diário. Já a União Soviética acreditava que o fascismo era o último estágio do capitalismo antes de se destruir.
Com o início da Guerra Civil Espanhola em 1936, era necessário ter um lado, e foi aí que surgiu o mito – criado pelos “intelectuais” ocidentais – de que Hitler era “de direita” (em contraposição à esquerda de Stalin). Essa súbita mudança de visão jamais foi explicada, e provavelmente não será, exceto com base na conveniência argumentativa. Posições binárias simples como mocinho-bandido e cowboys-índios são sempre satisfatórias. Praticamente todos consideraram o pacto Molotov-Ribbentrop (tratado de não-agressão firmado em 1939 por Hitler e Stalin) como um casamento cínico movido pela conveniência e não como uma tentativa de reunificar o socialismo.
No início da II Guerra Mundial, em 1939, a ideia de que Hitler era um socialista estava praticamente enterrada. A única exceção à regra foi o socialista George Orwell, que em sua obra de 1940, “O Leão e o Unicórnio” – escrita logo após Hitler conquistar a França – afirmou que o avanço nazista era “o desmantelamento físico do capitalismo”, mostrando que “uma economia planejada é mais forte do que uma sem planos”. Orwell afirmava que “a Alemanha possuía muito em comum com um estado socialista” e que Hitler entraria para a história como “o homem que fez a Cidade de Londres deixar de sorrir e passar a chorar” ao provar que o planejamento central funcionava melhor do que o livre mercado.
O diário do nazista Otto Wagener, consultor econômico de Hitler, registrou em 1933 – pouco depois de Hitler chegar ao poder – uma visão onde muitas das facetas que haviam tornado o socialismo “utópico” irresistível foram trazidas para uma era marcada por crises econômicas e guerras. Hitler associava, da mesma forma que o socialismo vitoriano fez anteriormente, um intenso radicalismo econômico a um entusiasmo romântico por uma suposta era onde o capitalismo não havia transformado o heroísmo em ganância sórdida e ameaçado instituições tradicionais como a família e a tribo.
O socialismo, dizia Hitler a Wagener, não era uma invenção recente do espírito humano, e quando ele lia o Novo Testamento via socialismo nas palavras de Jesus. Para Hitler, os longos séculos de existência do cristianismo falharam ao não aplicar os ensinamentos de seu mestre, e a tarefa do nacional-socialismo era dar corpo aos provérbios de um grande professor. Os judeus não eram socialistas e, portanto, Jesus crucificado era o verdadeiro criador da redenção socialista. Em relação aos comunistas, Hitler se opunha a eles por terem criado meros rebanhos soviéticos sem vida individual, e seu “socialismo formado por nações” era oposto ao socialismo internacionalista de Marx e Lenin. O principal e único problema de sua era, disse Hitler a Wagener, era libertar os trabalhadores, substituindo o controle do capital sobre o trabalho pelo controle do trabalho sobre o capital.
Com tudo o que sabemos sobre Hitler hoje, podemos afirmar, sem dúvidas: Hitler era um marxista heterodoxo que conhecia as fontes de suas ideias e como elas eram manipuladas por ele de forma heterodoxa. Hitler era um socialista dissidente, com um programa ao mesmo tempo nostálgico e radical, que buscava alcançar algo que os cristãos não haviam tentado e que os comunistas anteriores a ele haviam tentado e falhado: “O que os marxistas, leninistas e stalinistas não conseguiram realizar, nós teremos condições de alcançar”.
Essa era a visão nacional-socialista, vulgo nazista. Ela chegou a ser sedutora, e, ao mesmo tempo, nova e tradicionalista. Como todas as visões socialistas, ela se considerava moral, com políticas econômicas e raciais supostamente baseadas em leis morais universais. E se ainda restarem dúvidas sobre isso, sempre podemos recorrer ao diário de Goebbels, que em 16 de junho de 1941 – cinco dias antes do ataque de Hitler à União Soviética – exultou, na privacidade de seu diário, que o nazismo iria vencer os “bolcheviques judeus” na Rússia para implantar Der echte Sozialismus – o verdadeiro socialismo. Goebbels certamente era especialista em mentiras, mas não havia motivo para mentir em seu próprio diário. E até o fim da vida, assim como Hitler, ele acreditou que o nacional-socialismo era nada mais do que o seu próprio nome diz: socialismo.
Tradução: Marcelo Faria