Entenda, através da meta do superávit primário, porque quanto mais um indicador social quantitativo é usado para a tomada de decisões, mais sujeito ele é a ser corrompido.
Charles Goodhart, economista e professor da LSE, defendia que quando os governos tentam regular um ativo financeiro em particular, esse deixa ser confiável como indicador de tendências econômicas. A afirmação foi extrapolada para uma lei bem mais geral, que ficou conhecida como Lei de Goodhart:quando uma medida vira uma meta, ela deixa de ser uma boa medida.
Na mesma linha, o cientista social Donald Campbel abordou os problemas das metas de programas sociais, afirmando que quanto mais um indicador social quantitativo é usado para a tomada de decisões(como vincular o pagamento de professores às notas dos alunos em um teste nacional), mais sujeito ele é a ser corrompido, e mais apto será a distorcer e corromper os processos sociais que deveria monitorar (os professores passam a ensinar apenas como passar no teste, mas o nível real de aprendizado não se altera). Em resumo, a lei de Campbel diz que em políticas públicas as metas podem levar à tortura de indicadores, que deixam então de ser um bom indicador social. Algo como diminuir o limite inferior da renda para que uma pessoa seja considerada classe média, de forma que a diminuição da pobreza pareça maior.
No mundo das finanças públicas existem diversas metas que devem ser cumpridas pelos governos municipais, estaduais e federal. Grande parte delas foram instituídas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar n° 101 de 2000. Uma meta importante da LRF é a do gasto com pessoal – não mais que 60% da receita corrente líquida do ente pode ser gasta com pagamento de pessoal. Se passar disso, o governo deve tomar medidas politicamente drásticas, como a demissão de servidores públicos. Sendo uma medida para grandes tomadas de decisão, essa meta vem sendo um exemplo de aplicação da lei de Goodhart-Campbel em estados labor-intensive. Vejamos abaixo:
O gráfico mostra a despesa com pessoal do estado de Minas Gerais, conforme critérios da LRF. Podemos ver que a partir de 2006 o percentual é crescente, chegando ao ápice em 2010 e reduzindo-se substancialmente em 2011. Terá a despesa com pessoal caído ou a receita corrente líquida aumentado muito daquele ano em diante?
Participação da despesa com pessoal do Estado (valores atualizados). Minas Gerais — 2006-2013. Fonte: ALMG
Na verdade a queda é explicada não por economia ou arrecadação, mas pela alteração do cálculo da meta, que passou a expurgar os gastos com inativos do cômputo geral do gasto com pessoal – alteração essa baseada em uma interpretação da Portaria Conjunta n° 2 de Agosto de 2010 da Secretaria Nacional do Tesouro. A alteração da medida deu uma “folga” ao estado - que já estava bem próximo de atingir o limite máximo estabelecido na LRF – para conceder novos aumentos e contratações, e distorceu a capacidade do indicador de avaliar sua real situação fiscal.
Nesta semana, um outro caso de distorção de metas tem ganhado grande repercussão. Trata-se da tentativa, pelo governo federal, de alterar a meta de superávit primário constante na Lei de Diretrizes Orçamentárias, LDO, para este ano.
O superávit primário é uma medida e uma meta estabelecida todos os anos na LDO, por todos os entes federativos. Grosso modo, ele mede quanto o governo, excluídas as despesas e receitas financeiras (que envolvem pagamento de juros), conseguiu economizar para pagar a dívida. Na verdade deveríamos falar em resultado primário, pois o que pode acontecer é um superávit, quando as receitas são maiores que as despesas ou déficit, quando se gasta mais do que se recebe.
Para 2014, a meta de superávit primário da União foi estabelecida no art. 2° da Lei n° 12.919/2013 em R$116,072 bilhões, podendo ser descontados destes, de acordo com o art. 3°, até R$67 bilhões de gastos do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, e da desoneração de tributos. Na prática, portanto, a meta de superávit do ano pode baixar para até R$49,072 bilhões.
Amargando um déficit primário de mais de R$20 bilhões em setembro, o governo federal provavelmente descumprirá a meta, mesmo considerando as deduções já autorizadas das obras do PAC e outras, as quais, por sinal, foram expurgadas do cálculo nos últimos anos também para possibilitar o superávit, em um tipo de manobra que os especialistas apelidaram de contabilidade criativa e que já constituíam uma grave distorção do indicador.
Fonte: Tesouro Nacional
No último dia 11, a presidente encaminhou o projeto de lei do congresso - PLN 36/2014, que pretende alterar o referido art. 3° da LDO, que trata das deduções do gasto para fins do cálculo do primário. A proposta de nova redação do artigo 3° retira o limite da dedução de até R$67 bilhões, deixando livre o expurgo de todo o gasto do PAC e das desonerações. Na prática, mesmo com déficit, teríamos cumprimento da meta de superávit, podendo ser abatidos até R$122,890 bilhões (que é a soma até o momento dos gastos do PAC e das desonerações) da meta de R$116,072 bilhões.
Cientes da urgência e do temor da presidente em ser responsabilizada pelo descumprimento da meta em um período político tão delicado, PT e PMDB se mobilizaram para as negociações. A tramitação foi acelerada: o projeto já recebeu parecer favorável da Comissão Mista de Orçamento, que rejeitou as 80 propostas de emendas recebidas, grande parte da oposição, buscando reduzir o limite das deduções que podem ser feitas no cálculo. Agora a matéria será encaminhada para votação em plenário.
Se a alteração for aprovada, como provavelmente será, teremos um mais novo exemplo de aplicação da lei de Goodhart-Campbell. A meta do superávit primário do governo central deixa de ser uma boa medida. Talvez seja melhor assim que a alternativa, que é o abandono mesmo da meta (certa demonizaçãooportunista da responsabilidade fiscal já pode ser lida por aí). Uma suposição implícita da lei de Goodhart é que a meta é um valor. Melhores índices de educação, menos dívida, mais riqueza e menos gastos com pessoal são coisas que valorizamos, e por isso são metas que são, ao final, corrompidas para parecerem melhores do que o real. O superávit fiscal será uma grande mentira. Mas o governo gastar menos do que arrecada continuará sendo um valor.
ATUALIZAÇÃO, 20/11 às 13h40: Conforme informações da Agência Câmara de Notícias, após a tumultuada votação de terça-feira, foi fechado um acordo de procedimentos para votação, garantindo uma nova votação do projeto na CMO, uma vez que a oposição acusou a inobservância de regras do regimento interno, ameaçando pedir a anulação da sessão junto ao STF. A votação do parecer em comissão deve ocorrer na semana que vem.
Luciana Lopes
Mineira, formada em Direito pela UFMG. Atua como consultora legislativa de finanças públicas, é advogada e administradora pública.
FONTE:http://spotniks.com/como-o-governo-esta-tentando-enganar-voce-atraves-da-meta-superavit-primario/