Camp 14: Total Control Zone, que retrata a história do único norte-coreano nascido e criado em um campo de trabalhos forçados a conseguir escapar, foi eleito o melhor documentário pelo Festival de Cinema e Fórum Internacional de Direitos Humanos em Genebra. A produção alemã, dirigida por Marc Wiese, entrelaça o relato de Shin Dong-hyuk sobre seus 23 anos vividos no Campo 14 com animações que reproduzem o interior da prisão e com entrevistas dadas pelos guardas — que narram, com assustadora naturalidade, o cotidiano de torturas e execuções do local.
Fundado em 1959, o Campo 14 é um distrito de controle total para casos considerados irredimíveis. O complexo abriga cerca de 15 mil prisioneiros, que trabalham de 12 a 15 horas por dia em minas de carvão, fábricas e fazendas, muitas vezes em situações de risco, até encontrarem a morte em execuções sumárias, acidentes de trabalho ou doenças relacionadas à desnutrição. A história de Shin Dong-hyuk, que exemplifica essa realidade cruel até então desconhecida pelo Ocidente, é narrada pelo jornalista Blaine Harden em Fuga do Campo 14.
Contrariando todas as evidências, o governo da Coreia do Norte continua a negar a existência de campos de trabalhos forçados para prisioneiros políticos. O Departamento de Estado americano e grupos de direitos humanos estimam que os seis campos presentes no país abriguem nada menos do que 200 mil prisioneiros. Na última semana, a história de Shin foi contada por Glyn Davies(representante especial para assuntos relativos à Coreia do Norte) durante a reunião do Senado norte-americano sobre as sanções econômicas impostas ao país.
Shin, em fotografia tirada em abril de 2011.
A primeira lembrança de Shin é de uma execução, testemunhada aos 4 anos. Aos 6 anos, assistiu à morte, por espancamento, de uma colega de classe que havia roubado 5 grãos de milho. Aos 13, foi torturado e presenciou a execução da mãe e do irmão mais velho. No Campo 14, a execução pública — e o medo por ela gerado — é um momento didático. Didáticos também são os “Dez Mandamentos” do local.
As dez leis do Campo 14
1. Não tente fugir.Qualquer pessoa pega fugindo será fuzilada imediatamente. Qualquer testemunha de uma tentativa de fuga que não a denuncie será fuzilada imediatamente.
2. É proibida a reunião de mais de dois prisioneiros.Qualquer pessoa que deixe de obter permissão de um guarda para uma reunião de mais de dois prisioneiros será fuzilada imediatamente. Com exceção do trabalho, nenhum grupo de prisioneiros pode reunir-se sem permissão.
3. Não furte.Qualquer pessoa que furte ou esconda qualquer alimento será fuzilada imediatamente. Qualquer pessoa que estrague de propósito qualquer material usado no campo será fuzilada imediatamente.
4. Os guardas devem ser obedecidos de maneira incondicional.Qualquer pessoa que deixe de demonstrar total submissão às instruções de um guarda será fuzilada imediatamente. Ao encontrar um guarda, deve-se inclinar a cabeça em sinal de respeito.
5. Qualquer pessoa que veja um fugitivo ou indivíduo suspeito deve denunciá-lo prontamente.Qualquer pessoa que forneça cobertura para um fugitivo ou o proteja será fuzilada imediatamente.
6. Os prisioneiros devem se vigiar uns aos outros e denunciar imediatamente qualquer comportamento suspeito.Todo prisioneiro deve observar os outros e permanecer vigilante. Se alguma coisa despertar suspeita, um guarda deve ser notificado imediatamente. Os prisioneiros devem comparecer fielmente às reuniões de luta ideológica e devem censurar os outros e a si mesmos com veemência.
7. Os prisioneiros devem mais do que cumprir a tarefa que lhes é designada cada dia.Prisioneiros que negligenciem sua cota de trabalho ou deixem de cumpri-la serão considerados descontentes e fuzilados imediatamente. Cumprir a própria cota de trabalho é lavar os próprios pecados, assim como recompensar o Estado pelo perdão que manifestou.
8. Fora do local de trabalho, não deve haver nenhuma convivência entre os sexos por razões pessoais.Caso ocorra contato físico sexual sem prévia aprovação, os perpetradores serão fuzilados imediatamente. Fora do local de trabalho, não deve haver conversas entre os sexos sem prévia aprovação.
9. Os prisioneiros devem se arrepender sinceramente de seus erros.Qualquer pessoa que não reconheça seus pecados e os negue ou mantenha uma opinião desviante sobre eles será fuzilada imediatamente. O prisioneiro deve refletir profundamente sobre os pecados que cometeu contra seu país e a sociedade e esforçar-se para purificar-se deles.
10. Prisioneiros que violam as leis e regulamentos do campo serão fuzilados imediatamente.Todos os prisioneiros devem considerar os guardas como seus verdadeiros mestres e, obedecendo às dez leis e regulamentos do campo, entregar-se através da labuta e da disciplina à purificação de seus erros passados.
Ilustração de Shin Dong-hyuk que retrata uma das torturas sofridas no Campo 14.
Foi em busca de comida que Shin tramou sua fuga. Em 2005, atravessou as cercas eletrificadas do Campo 14 por cima do corpo inerte do único amigo que tinha no local e partiu a pé rumo à fronteira da China. Em 2007, dois anos depois de escapar, estava vivendo na Coreia do Sul. Quatro anos mais tarde, morava no sul da Califórnia e era embaixador sênior da Liberty in North Korea (LiNK— Liberdade na Coreia do Norte), um grupo americano de defesa dos direitos humanos.
Como correspondente em Tóquio para o Washington Post, Blaine Harden conheceu a história de Shin por meio de ativistas de direitos humanos. O encontro, que inicialmente resultou em uma impactante reportagem para o jornal, abriu caminho para as sucessivas entrevistas que deram origem a Fuga do Campo 14, um relato minucioso do cotidiano árido e sem perspectivas dos prisioneiros políticos na Coreia do Norte. O livro traz ainda mapas e um caderno de desenhos feitos pelo próprio Shin.
Leia um trecho do livro.
Algumas coisas precisam estar acima do embate político. Uma delas é a atenção ao cenário das trevas que se instalou na Coreia do Norte e que sobrevive há 60 anos. Tome alguns minutos do seu tempo e assista a esse relato sobre os campos de concentração que ainda existem naquele país e que tratam famílias inteiras como escravas por "crimes políticos" cometidos por seus antepassados. Não dá para aceitar que setores da esquerda brasileira e até partidos políticos ainda tentem relativizar, omitir ou mesmo justificar atrocidades cometidas por esse Estado genocida. É preciso admitir o óbvio: o regime adotado por Kim Il-sung sob influência stalinista é uma das maiores tragédias do século XX e início do século XXI. Estive na Coreia do Sul pela União Internacional Democrata (IDU) em novembro do ano passado, onde fiz uma palestra denunciando o Foro de São Paulo e sua zona de influência na América Latina. O contraste entre o atual momento das duas nações separadas na década de 50 é uma aula de história que nem o mais esquerdista dos professores de nosso ensino básico pode contestar.